quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

JORGE DIAS: UM URBANISTA DA MEMÓRIA


Texto que fiz para o catálogo da exposiláo de Jorge Dias, Lugar-comum, que inaugurou ontem:


A longa noite;
o som da água
diz o que penso
GOTXIKU

Volta Jorge Dias ao nosso convívio com uma exposição de título genérico «Lugar-Comum».
A expressão lugar-comum é habitualmente entendida como um signo de pacificação, como designando um dito ou território dominados pela habituação que antecipa a invisibilidade.
Neste caso, entendê-lo assim seria laborar num erro. Há uma ambivalência, uma incomplacente ironia ao fundo da escolha deste nome para esta exposição.
Diga-se, de antemão, o coração de Jorge Dias é um coração escarpado, a sua é uma sensibilidade que não se ancora no óbvio, nos recortados contornos da clareza, e antes procura as obliquidades, os lugares de passagem, o plinto da inquirição.
É aliás um dos poucos artistas moçambicanos que prefere as perguntas às respostas, e que por isso se move em territórios sempre fronteiriços, entre o mundo e a arte, entre as formas e os seus limites, tangências e intercepções, entre a finitude e a transfiguração, entre a “cosa mentale” e o domínio oficinal, entre o quotidiano e os seus resíduos no escopo da arte, num ecletismo conceptual que contamina os seus próprios processos duma espontânea mestiçagem.
Daí que outra pulsão que vai aparecendo nas suas obras seja a da memória. O que seja, como se projecta, intromete, se organiza em casulos, infiltrando-se nas figuras para o seu suceder-se em mutação; Jorge Dias sonda de que modo os signos se retroalimentam e fluem num território entre, incandescente e espectral que ninguém quer habitar, como se assombrado por kipocos.  
Jorge Dias não receia, enfrenta-os, reconverte-os, desabita-os: resgatando-os assim à sua memória amorfa, desordenada, fixa, para os re-situar no movimento ordenado do mundo e das formas.
Mas de que falamos?
Jorge Dias sente como poucos artistas, ao fundo da epiderme, a realidade excruciante que se vive no seu país: Moçambique é uma entidade magmática, que condensa estratos e estratos de realidades simultâneas e de passados múltiplos, o que é ainda vivido de forma dilacerante, como se fosse um mal ser habitado pelos contrastes do múltiplo, à espera de um urbanista espiritual que reconcilie este capricho de viver num espaço que é um bazar de diferentes tempos históricos.
Para muitos esta herança é um mal.
Creio que Luís Carlos Patraquim na poesia e Jorge Dias nas artes plásticos serão aqueles artistas que talvez melhor convivam com a riqueza de uma extensa centrífugação identitária, onde todas as marcas da memória são integradas. Eles não aceitam a memória amputada, literalmente e em todos os sentidos, e neste sentido o projecto de ambos envolve, sem querer, algo de natureza política. E ambos preferem a saturação à redução.
É Michel Mafesolli quem menciona esta noção proposta pelo sociólogo P. Sorokin e que se mostra, a este título, muito instrutiva: a «saturação». Consiste esta, continua o francês, no processo, quase químico, que dá conta da desestruturação de um dado corpo e que é seguida pela reestruturação desse corpo com os mesmos elementos daquilo que foi desconstruído.
Trata-se, inclusive, insiste o francês, de uma forma de inscrição, assim ao jeito de uma estrutura antropológica, que se encontra na filosofia, na literatura, na política e também na existência quotidiana, nas quais se ilustra essa relação íntima e constante entre a “pars destruens” e a “pars construens”.
Aquilo que, em todas as coisas, se destrói e se reconstrói. Vida e morte ligadas numa combinação íntima e infinita. Tudo tem a sua génese e tudo tem o seu declínio, mas antes de diluir-se transmuta-se: há uma recoagulação.
Temos aqui uma chave para estes trabalhos de Jorge Dias.
Jorge pegou numa série de capulanas, que têm já o seu padrão constituído e fez delas «um chão comum». Como se esta “tela” fosse o país de que se parte ou a que se chega. E depois foi colando ao sabor da navegação do seu olho clínico elementos heteróclitos de todo o tipo – de garrafas de coca-cola, a adereços florais ou fitas dos vestidos de noiva, a linhas de bordar, capas de telemóvel, carteiras de verga, cunhas de madeira, espigas, palhas, carumas, pequenas peças de artesanato, um sem número de índices referenciais a que não faltam sequer os artefactos da sua própria memória artística, como os seus célebres insectos de arame – em composições sempre diversas que vistas em perspectiva ora evocam a action painting como mandalas, num impulso de grande liberdade. Melhor que, absorvendo nalguns elementos alguma dessa atmosfera nunca caem na esparrela do kitsch e configuram antes constelações, ou cartografias de outro tipo.
Por outro lado, uma das coisas que tornam excelente a exposição é o seguinte: Jorge Dias de há muito que não é um artista que tenha como parâmetro as leis da Beleza, não fareja as proporcionalidades e as suas rimas internas. Como diria Danto, em resposta a Jean Clair, a linhagem de Jorge Dias é a dos artistas que inauguram um sentido. Que até pode remar contra aquilo que é considerado belo, pois como justificar a desnorteada lógica da realidade social com o artifício da beleza?
Porém, no seu afã construtivista (Jorge é um artista que pondera e demora cada acto) verificam-se nestas “paisagens” alguns “momentos” em que há um extremo equilíbrio na composição, despontando desse máximo de saturação (de elementos, formas, e padrões conjugados) uma harmonia inesperada que claramente faz pulsar uma unidade, ou dir-se-ia, a indivisibilidade que expande.
Esta vibração – como se os elementos se buscassem mutuamente para produzir uma conjugação necessária e viva – de cores e ritmos que se sente em alguns destes trabalhos não corresponde tanto ao tipo de beleza como foi concebida no Ocidente como ao tipo de experiência contemplativa unitária que se identifica no Oriente.
O Antoni Tapiès adoraria esta exposição.
Também eu a acho excelente e por isso acabo com um poema, que investe numa igual ventania de motivos, lugares e memórias, para os depositar num “lugar-comum” (que é o corpo do poema), e que dedico ao Jorge Dias, que o entenderá porque é um homem permanentemente ocupado:

O PLANO PARA A SEMANA
Coração pelado, algoritmo
de um gato que cruza
o enquadramento em patins de gelo
- num lago na distante Montana.

De que vale imaginarmos
que ficamos sem pé
a meio de um lago que degela
nos EUA, a norte de Montana?

Parecem esculturas os tubos
de escape fundidos que anunciam
mecânico em Maputo
- fica-te pelo que vês,

e urina dentro do penico.
Ao domingo. À segunda
agarra-te ao teu coração pelado
em Kobani. Arrasta essa dor

até terça. Na quarta lembra-te
que até as matilhas de lobos
sonham. E por essa frincha
de néon deixa que o amor

te indemnize, mesmo em torvelinho.
Recomeça. Algoritmo de um gato
que sob a exsudação dos coqueiros
e um fedor a gasolina martelada

ensina a ler Eurípedes
em papel bíblia
sem que nenhum muezim
consiga calar o seu canto.

Eis um bom plano para a semana.
Tenta agora manter-te no encalço
do domingo, no sereno travo

que os centauros apreciavam no bacalhau.

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