quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

BEAUTIFUL PEOPLE

359*

Não faço a menor ideia porque é que esta belíssima foto de Alice WR me inspirou o pequeno conto que corre em baixo e que escrevi em Março de 2014, em Nacala, quando filmava com o cineasta Fábio Ribeiro, a quem dediquei a narrativa, que daria um filme durinho:


«Tomé estava longe de ter planeado entrar na cabina do chapa e de zarpar com a viatura quando a viu estacionar à porta da barraca Trinitá e o motorista a esgueirar-se - o sequestro de uma mija arrepanhava-lhe a fronha - para as traseiras. O apagão que logo a seguir detonou na rua é que lhe ondulou na cabeça e aí mais nada fez senão obedecer ao impulso.
Entrou na cabina, confirmou que a chave estava na ignição, e rodou-a. Suavemente, como faca na manteiga, fez deslizar a carrinha por entre os volumes enegrecidos (houve tempo para experimentar os óculos raban que se encontravam no tablier), e só no fim da rua acelerou. Estava no papo.
Não havia mais que quatro ou cinco passageiros mergulhados no bréu, mansas criaturas amodorradas pelo bréu, e ninguém dera pela troca do motorista. Deixou-se seguir sem acender as luzes interiores, sem o tinir duma sílaba de protesto - gado bom de ordenhar.
A música que o leitor de dvds emitia era estranha, uma toada electrónica que lhe parecia velha como o mundo. Ouvia-a e vinha-lhe à cabeça o refrão: há quantos anos deixei de usar ganga? Não sabia se achar mais bizarro o gosto daquele motorista se o modo como as frases lhe despontavam no cérebro, cometas chegados de nenhures para um destino inadivinhável. Há quantos anos deixara de usar ganga? Que tinha uma coisa a ver com a outra? Deixou a música tocar, a ver onde aquilo ia.
Conhecia a rota como a palma da mão e levou a viatura sem custo até ao seu término. Aí encheu o carro de people que se acotovelava como botões que desesperassem por regressar a casa. Aproveitou para descobrir que música era aquela. Neu! Hallogallo. Era quase gala-gala, mas não, não conhecia. Voltou a colocar o disco. Algas com ferrugem num mar electrónico - vira uma vez na Costa do Sol. Com o carro já cheio, só aí se apercebeu que o chapa andava sem cobrador - melhor, cobrou ele logo à cabeça.
Era vinte e duas horas e o apagão alastrara a sua tinta de polvo por toda a cidade.
Ladeava o muro da lixeira do Zimpeto quando puxou da pistola com silenciador que havia comprado ao china e, sem se virar, atirou ao acaso por detrás do pescoço, visando duas vezes à esquerda e três à direita. O silenciador funcionava, não fazia mais barulho que um peido de formiga. O escuro, a surpresa, a sua rapidez ajudaram.
O alarido só rebentou quando numa guinada parou o chapa à beira do muro e, gozando o prato, acendeu as luzes virando-se para trás, de pistola em riste. Os passageiros olhavam estarrecidos as vítimas de cabeça pendida. Atingira em cheio um olho, um coração, uma testa, um cotovelo que guinchava e um pescoço que gorgolejava. Uma mulher olhou o sangue na sua mão e gritou, pela última vez na sua vida. Foi remédio santo para os demais. Disse-lhes:
- Passem-me tudo o que têm nos bolsos.
Depositaram tudo no lugar vazio ao seu lado. Moedas, notas, telemóveis, porta-chaves. Até perservativos. Encheu os bolsos. Depois articulou, pausadamente:
- Vamos sair, calmamente, e pôr os mortos onde devem estar...
Não se apercebia de como aos ouvidos dos seus acagaçados passageiros a sua voz soava mais metálica que aquela música que, esgravatando o miolo do escuro, pastoreava estrelas. Desciam do chapa atrasando o passo, mais enfiados que esterco no rabo do cabrito. Veio-lhe ao nariz sinais de que um gordo se borrara, literalmente. Atrás dele desceu um madala (1) com umas calças de ganga. Há quantos anos deixara de usar ganga? Donde raio lhe chegava aquilo? Desligou a música. Alinhou-os contra o muro. Aproveitando o estupor em que estavam, na rapidez que lhe dera o treino de comandos, mudou o carregador da arma. Contou-os. eram treze. Abateu o gordo. Explicou:
- Não gosto do treze e este já fedia...
Uma mulher soluçou. Baixinho, o que lhe valeu. Apesar do escuro, ouvia as grossas bátegas de calafrio entrechocando-se como seixos na testa dos homens. Ao redor, os grilos faziam de segundos violinos. Vivalma. Noite de trevas, muito ao longe acenava o farol dum carro, mais solitário que o lenço de mulher esquecida. O gordo gemia. Um balázio na cabeça serenou-o. Tomé suspirou, entediado, e observou:
- Escarumba é assim mesmo, vive da bacela (2) do seu medo. Vamos ao que interessa. Quatro a quatro, peguem nos corpos e atirem-nos por cima do muro. Sempre que falharem abato um dos quatro...
Os homens superam-se. Tomé viu como um a um os cadávares foram balanceados à justa. Impulsão feita à medida. O quarto corpo elevou-se um pouco mais, deu uma reviravolta sobre si e pairou um momento no ar antes do ombro ir embater no topo do muro fazendo-o rodar para o outro lado. Borbulhou o alívio que tem um pneu furado. Não ficaria mal aqui a ratinice dum corvo, se um corvo fosse capaz de se interrogar, há quantos anos deixei eu de usar ganga. Porém, Tomé congelara a música dos alemães Neu!
Ao baque do último corpo no outro lado do muro, Tomé gabou:
- Somos melhores que os mambas(3)... os moçambicanos só precisam de uma motivação... - e atirou para o ar - Alguém guia?
Um rapaz novo, hesitante, receoso, levantou a mão. Tomé - deu-lhe um súbito cansaço - deixou cair a arma, olhou para ele e sugeriu, meigamente:
- Leva-os daqui... - sorriu, antegozando a ideia - E para os jornais digam que foi um comando da Renamo...
Num ápice, viu-os desaparecer. Foram no encalço de um velho Mercedes que passou, tossicando.
Tudo tinha corrido pelo melhor. O apagão, o avançado da hora, a pouca afluência de carros, não ter havido um passageiro que se julgasse com estofo de herói... até a piada final lhe saíra a primor. Além disso, Tomé que, como o seu xará bíblico, gostava de ver para crer, era obrigado a reconhecer que os chineses, afinal, não têm à venda só a fancaria das lojas de trezentos, tinham do bom.
Encaminhou-se para casa, vivia ali perto. A mulher esperava-o. No dia seguinte podia comprar-lhe um micro-ondas, tão prático para durante a noite se aquecer o biberão do bebé. E os óculos raban ficavam-lhe a matar.»

(1) um homem já maduro
(2) um pequeno brinde numa compra informal, compra-se seis maçãs e a vendedora dá uma sétima, por exemplo
(3) o nome que se dá à equipa de futebol moçambicano, que na semana anterior à escrita do conto havia desiludido mais uma vez num confronto internacional 

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