sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O IMPLANTE DE PÉLVIS E AS CRIANÇAS-BOMBA

oleiras, silva dunduro

Certas vezes, África faz-me lembrar a anedota contada por Marie Darrieussecq numa das suas novelas: um marinheiro pergunta ao capitão se uma coisa está perdida quando se sabe onde está; claro que não, diz o capitão; então o seu cachimbo não está perdido, está no fundo do mar.
África existe algures ao fundo do mar de imagens que a desapropriam de uma comoção inaugural. É o que faz o seu fascínio e o seu drama: ninguém acredita que ainda existe. Mesmo os autóctones tendem a duvidar. E percebe-se porquê: são-crianças-soldado, crianças-bomba a quem roubaram os sonhos e que só podem duvidar do chão que pisam.



Uma das duas avós que me crivaram a infância de histórias – uma desbragada de uma fantasia lapidarmente histérica e outra prenhe de superstições –, impaciente por eu, em vez de engolir a sopa de letras, me entusiasmar a contar um espectáculo de sombras chinesas que fora à escola, interrompeu-me, seca: «se não olhares bem para as letras do prato e se aí não vires centenas de sombras chinesas, eu faço-te um implante de pélvis!» (queria dizer «pele» - tinha lido no Notícias desse dia sobre um operação plástica feita a um bombeiro e estava realmente impressionada com as possibilidades da cirurgia plástica – mas a impropriedade que a caracterizava soprou-lhe a variante). Deslize que faço meu!
De implantes de pélvis – enxerto platónico para um país de enxovia – é do que andamos precisados.



O meu primeiro texto diarístico escrito em Maputo,10 de Janeiro 2005
Eis-me, encafuado com mais trinta, no curto cubículo do secretariado dos armazéns do aeroporto, onde tento levantar a minha bagagem sem passageiro.
Há meia hora que pedincho uma palavra, que algum daqueles dez funcionários que acomodam os quadris basálticos nas suas cadeiras redondas profira uma frase. Cansado de esbarrar num calado tão profundo, ouso perguntar:
Há algum problema, para não sermos informados de nada?
Ela nem olhou para mim. Uma funcionária macambúzia com, adivinha-se no seu acentuado estrabismo, uma espessa resistência ao mundo. A sua resposta, imponderável, ribombou no ar:
Se o senhor fizer perguntas, eu não consigo trabalhar…,
Esboço um sorriso, enquanto o largo balcão de jambire, sob pressão dos de trás, se encastoa no meu esterno.
De facto, não compreendo nada do que ela apelida de trabalho. Neste aquário (4 por 7 metros) aboletado, dispõem-se uma dezena de secretárias do tempo colonial, em cujos tampos se amontoam maços de papéis, provectas máquinas de escrever, furadores, agrafos, e braços que se movem ao ralenti; vinte braços transpirados que manuseiam, na celeridade comum às algas, os novos processos. Cada funcionário conta, uma a uma, as folhas de cada processo (quando se engana, torna à folha de rosto, o que é frequente), e depois carimba-o, página a página, após o que – ah, a arte do devagar! - o passa a outro, que repete a mesma operação. Cumprido o circuito tortuoso, vegetal, por todos eles, o chefe de secção acolhe os processos com um pigarro, e começa a assiná-los.
Alto, que a esferográfica não escreve! Fricciona-a nas palmas da mão, para que o seu bico fique quente, e sopra-lhe depois na ponta (respiração boca a boca?), para afastar as impurezas, antes de tentar de novo. A lapiseira mostra-se mais seca que Sara, a mulher de Abraão - um fanico pegado. O chefe, num gesto teatral, deixa-a então cair, num baque surdo, sem remorso, no cesto de papéis que lhe coroa os pés. Pede uma lapiseira emprestada ao seu subordinado mais próximo, põe a postura condizente, e a sua assinatura começa finalmente a sua ronda. É um coral azul que suspende as respirações no aquário e flui como maná.
Tudo em silêncio. Bom, algo borbulha, em shangana ou ronga.
Por fim, esmolados quarenta minutos em profusa paciência, o processo é depositado na prancheta, junto à porta do gabinete. Há que rezar para estar incluído nessa primeira vaga de processos. Mas o que é isso para quem perguntou ao catecista se a dentadura de Deus tinha dentes de ouro? Eis-nos no passo seguinte: a caminho da tesouraria para pagar o que aí foi averbado.
Seguem-se vinte minutos de espera, agora, pelo menos, sentado, na sala da alfândega. Reconheço a minha caixa ao fundo, devido ao desenho colorido com que a minha sobrinha embelezou uma das faces. A minha mão segura firme o recibo que identifica a bagagem. Com raiva, empapa o papel. Os olhos ainda vidrados pelos cinco minutos de discussão no guichet da tesouraria. «Vá pedir o troco ao Estado!», sugeriu o f. de p., num sorriso triunfante, perante os meus protestos. Espero agora que um funcionário traga o meu processo, munido do carimbo do tesoureiro, aos serviços de fiscalização da alfândega, onde o mesmo voltará a ser manuseado de trás para a frente por mais quatro funcionários, antes de anteporem o seu carimbo no recibo.
Ocorre-me em jeito de eureka, a burocracia é uma forma de empregar as pessoas: investi-las de carimbo. É o Graal da acção social.
Quando me sentei, um dos quatro carimbadores profissionais desta secção dormia a sono solto sobre o tampo da secretária. Ressonava. Se calhar também dorme, o funcionário que faz a ligação entre a tesouraria e a fiscalização. Escrutino uns cartazes contra a corrupção, colados na vitrina do gabinete que acomoda os polícias das alfândegas. Suspiro, eu pagaria de boa vontade por debaixo da secretária, para me despachar num ápice. Passa a cinquenta minutos, a espera.
Certificada a carga (há que despertar o carimbo dorminhoco, que, apesar da sonolência, foi o mais lesto), os humores da mulher-polícia da alfândega não estão pelos ajustes. Rudemente (é até bonita mas a sua descorçoada má educação deita tudo a perder) obriga-me a abrir a caixa:
O senhor só pode mentir, não é possível que uma caixa de 20 quilos só contenha livros!
A sua cruzada terá na mira um bacalhau, que possa confiscar?
Não escondeu o seu desagrado ao verificar que a caixa só continha livros.   
Quase duas horas depois de ter iniciado o meu baptismo de fogo, alço a caixa com os malditos livros para a carrinha da minha cunhada. Chegado.



Beberico numa tosca tasca do Mercado do Povo, com zinco sobre a cabeça, caixas de cerveja e coca-cola na costas e gaiolas com frangos, patos, e pequenos coelhos na frente. Pelo meio circulam as pessoas, pobres, pobres, e remediados – os portadores de uma pobreza que vexa mas não lacera. Os miúdos, às revoadas, tentam vender-me caricas, caixilhos para slides, canetas bic. Atrás das gaiolas alinham-se as bancas de carvão. Erguendo os olhos, à esquerda, sucedem-se os prédios, degradados, e voltam-se a ouvir as buzinas. Se olhar para a direita sobrepõe-se o bramido dos galináceos.
Quantas doenças se apanharão aqui, entre embalagens, restos de comida, e a podridão, o ranço, o suor de gente sem futuro – pensariam oitenta por cento dos jornalistas que conheço, setenta por cento dos antropólogos, noventa por cento dos familiares. Desde que cheguei que me avisam que este foi sempre um lar de bandidos e bacilos, e que hoje é um mercado degradado até no crime. No entanto, que conforto, que paz neste devir anónimo. Ser anónimo face à vida, face à obra, como o cidadão na cidade que se desenvolve organicamente e permite a travessia de microclimas sucessivos, a descoberta de uma hipótese consentida.
Só se adquire este sentimento de estarmos separados do mundo pela mínima espessura de um cabelo quando se nasce desprovido, sem hipóteses à cabeça.
E então leio:
«No bar do teatro, a senhora da estola enrolava a massa na boca e estava ainda indecisa sobre a qualidade do croquete que tinha na mão quando deu conta que o lugar vago a seu lado fora ocupado pelo seu ídolo, o bailarino Nijinsky.
Deixou cair o croquete, e, com os dedos a segurar a ausência do salgado, venceu a sua habitual timidez perguntando ao bailarino:
Como é que faz?
Perdão?
A maior parte das pessoas quando salta no ar vem imediatamente para baixo...
Porque hão-de vir logo para baixo... – replicou Nijinsky – Demorem-se no ar um bocadinho, antes de descerem».



Extraído da Autobiografia, de Zao Wou-Ki, grande pintor chino-francês, presença determinante da Escola de Paris, dos anos 50 e 60, e amigo e Michaux: «(sobre a sua infância)
...os generais decapitavam e colocavam as cabeças à entrada da cidade – cabeças ue pintavam metade em verde,a outra em vermelho. Como todas as crianças qua saíam da escola, empurradas pela multidão ao primeiro tumulto, eu assisti a uma execução. Não se podia recuar, era-se obrigado a olhar. Adormeci durante muito tempo, aterrorizado pela visão dessa cabeça rolando sobre o solo, cujo sangue espirrava de todos os lados.
Esta época foi terível. Havia suicídios entre os mais pobres, que não conseguiam sobreviver e vendiam os seus filhos no caminho da escola. Não eram incomuns os enforcados...»
Depois disto nunca se fará uma pintura realista. Seria absolutamente desumano.


Há um conto do moçambicano Carneiro Gonçalves, O Remo, que sempre me agradou muito e cujo final não esqueço:
«Sabes o que me apetece? Qualquer dia pego num remo e fujo. Mato adiante, só paro quando tropeçar na primeira aldeia. Logo que veja um homem: Sabes o que é isto?, e mostro-lhe o remo. Se ele disser que é um remo continuo a fugir. Juro-te que ninguém me agarra. Fugirei até desentranhar nova aldeia, até que ela me surja, por entre as franjas das árvores mais altas da floresta, limpa como no princípio do mundo. E logo que veja o primeiro homem pergunto: Sabes o que é isto? E se mesmo assim ele disser que é um remo continuarei a fugir. Quando enfim encontrar o homem que for capaz de  dizer que aquilo é uma pá de um moinho, espeto o remo no chão, instalo-me e recomeço a viver.»
Este homem foge dos sentidos únicos, movido pelo espírito de um irrigador de infinitos. O tenaz desejo que o impele à errância preserva, por outro lado, e paradoxalmente, a unicidade da arte, no sentido em que valida atrevidamente nas imagens a ambivalência que as descristaliza, conciliando o singular recorte hidrográfico com a potência do delta.   
É num espírito idêntico que Exúpery desenha a jibóia que faz a digestão de um elefante – o que as pessoas “sensatas” tomam invariavelmente por um desenxabido chapéu. Curioso é que libertação das coisas da cadeia da sua aparência reproduz-se até nos erros da ilustração: Exupery empresta uma peruca verde aos três embondeiros do planeta do Principezinho deixando-nos sem dúvidas quanto ao facto do escritor nunca ter visto tal árvore - contudo, como o narrador confessa terem sido aqueles embondeiros “inspirados por uma grande sensação de urgência” legitima-se que uma certa e inesperada prenhez se estenda à folhagem da árvore, que prolifera, cheia como a motivação ininterrupta.
É mais que um simples jogo: o homem que diz convictamente que um remo é uma pá de um moinho foi “movido” por uma mutação do olhar que abole qualquer ricto estilístico, o que autoriza a que se enterre o remo, fixo, no chão até enflorescer o moinho que um dia levantará voo com o vento, levando o fugitivo dentro.
Porque aquele que aceita em si a semente do devir, da metamorfose, nunca aceitará que esta cesse.
A arte que abre uma janela para o devir é a que mais me interessa, posto que encara o mundo como um mundo imperfeito, portanto, etimologicamente, um mundo inacabado. Talvez nos caiba a nós perfazê-lo, acabá-lo. Para os celtas era esta a missão que Deus deixara aos homens quando se retirara para descansar, no sétimo dia.
Agrada-me este desafio e a sua responsabilidade.



Quiasma: a acrescentar ao meu catálogo de palavras que usarei invariavelmente a contrapêlo. Tão próximo quiasma de quiabo.


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