quinta-feira, 5 de março de 2015

ÉTER, DO LANÇAMENTO E DE OUTRAS FESTIVIDADES



Como escritor fui claramente recuperado por dois editores a quem estarei grato toda a vida, Nicodemos Sena, da Letraselvagem, de S. Paulo, e João Paulo Cotrim, da Abysmo, velho amigo e meu comparsa de escrita, e que decidiu apostar em mim nesta sua jornada editorial.
Acontecerá assim o nosso terceiro acto, ÉTER, um livro de contos, que será apresentado por Luís Carmelo, também escritor e homem de deambulações pelo guionismo de cinema, como eu.
Mas, incitado por uma manifestação simpatiquíssima de Isabel Pires de Lima, que na Póvoa do Varzim se me dirigiu espontaneamente para me dar conta do quanto lhe tinha agradado o meu romance A Maldição de Ondina (Letraselvagem, 2011, e Abysmo, 2013), e do facto de ter sido apanhada de surpresa pois desconhecia que, fora do jornalismo, eu tivesse livros de ficção escritos, surpresa que é a de muitos porque os meus livros anteriores não mereceram por parte dos editores o mínimo do esforço de divulgação que eventualmente mereceriam, vou pontuar estes dias que faltam até ao lançamento do Éter, divulgando alguns dos contos que lamento não terem sido lidos.
Começo com o conto que abre o Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, de 2008 (Teorema) um livro de trezentas páginas, onde gastei dois anos, e que suponho ter sido guilhotinado pela Leya.



OS PÉS NUS DA SANDIE SHAW

O despedimento do meu pai, naquele meio-dia aziago, atirou-me para a casa de minha avó materna na rua Arco de Carvalhão. O nascimento da minha irmã, vaticinado para esse mesmo dia por sensores sísmicos, é que me forçou a atravessar o Tejo e a uma visita a Campolide. Os dois acontecimentos, nascidos do mesmo casulo, deliberaram a minha primeira ida a Lisboa sozinho.
Logo pelo início da manhã, o meu pai, que fervia em pouca água, ao compôr na linotipe o boletim da igreja, foi sugestionado pela sacanice do patrão não o haver dispensado para o previsível parto da mulher e escreveu por lapso em chumbo “o filho da puta” em vez de “santíssimo sacramento” — incidente que deixou coruscante o seminarista do encarregado.
“Vai, filho, quando vieres já passou tudo...”, exortou o meu pai, misterioso, ao almoço. Ruminávamos o polvo cozido em silêncio, enquanto a minha mãe tomava um banho e se rapava; a parteira já fora avisada.
O que me assustava não era provar que já era um homenzinho, o meu drama era outro, inconfessável, ou inconveniente para aquele dia.

Três horas depois, no Parque Eduardo VII, soube que uma desproporcionada medida punitiva se estendera a toda a família: um braço gordo e implicativo empurrou-me para o lago dos cisnes e eu catrapus num pinto. O cigano deu de frosques, nem esperou pelo gozo do espectáculo — a minha ensopada crista resgatou-se das águas para o eco das suas gargalhadas.
Aquilo é um cóio de valdevinos, prevenira a minha avó Judite, mas os meus nove anos corriam à minha frente, desprovidos de alarme, de Campolide ao Parque Eduardo VII e agora de retorno, ribeirinho da triste figura.
Abreviando, um pinto agarra uma niquelada cabeça de leão com a dextra tímida e faz soar três pancadas. Uma por cada andar. O prédio, pombalino, soma quatro vezes as idades dos seus inquilinos, à beira de cair da tripeta. Em 1967, na Rua do Arco de Carvalhão, num dos últimos prédios no centro de Lisboa sem luz eléctrica, quando um cigano gordo, de brilhantina, num empurrão de desdém me recomendou aos peixes.
Uma tia-avó — a gémea Albertina — vem recolher o triste, o candeeiro de petróleo acima da cabeça ilumina-lhe o pólipo no queixo, como é de hábito nas velhas solteironas e com cheiro a cola. Ai Toninho, que encharcadinho, o refrão perseguiu-me escada acima, como o bolbo da luz, comigo à frente a galgar o escuro — varado por uma vergonha inconsútil.
Eu avisei-te, reatou a minha avó, que só vislumbrava paz no mundo quando esticava com o rolo a massa tenra, eu avisei-te: quatro olhos não chegam para os matulões do Casal Ventoso. E agora, como vais para casa, perguntou o tio Pedro Ventura, marido da outra
tia-avó — a gémea Mariana — a da verruga na sobrancelha esquerda. Sim, como ir para casa, o único desígnio aceitável para essa noite.

Além disso, detestava aquela casa com um pé-direito onde se empilhavam sombras, o caruncho, a fuligem de séculos de petróleo queimado. Detestava a água borrifada de ferrugem e o corredor comprido com portas altíssimas e bandeiras de vidro, nas quais, caído o dia, lucilava o rasto de anjos tuberculosos. Ou pelo menos havia demasiada tosse por trás das portas, muito catarro a pegar de empurrão.
Como é que tu vais, miúdo, indagava o tio Ventura, expondo a gengivite que vagarosamente lhe defenestrava as favolas, seccionadas em três níveis: o gume amarelado, logo acima a massa parda das obturações, que dividiam o dente em ying e em yang, e por fim a haste, um corno de rinoceronte oxidado pelo tempo e a nicotina.
Não vai, sentenciou definitiva a minha avó, catando-me a última esperança e fazendo-a estalar entre as unhas dos polegares. Não, não veria televisão nessa noite. Ia ser o escárnio da escola. Aconteceu-me ler num moralista francês: ”O leopardo nasce com as malhas que tem e eu nunca tive tenção de me tornar melhor, nem de tal coisa me julguei capaz. Nunca reclamei qualquer espécie de virtude”. Absolutamente certo — e no entanto que preguiça, que desalento, que pequenez! Eu nesse dia não regatearia ter tido no jardim as malhas e as garras de um leopardo e à noite, nessa noite, projectava ser a Simone de Oliveira, ou, no mínimo, a glote que vibra nos trinados do Tom Jones. Mas não, um pinto não vai para casa.

    O meu tio Isidro não parava de rir. Chegou do trabalho às sete da tarde, eufórico, tinha recebido a notificação de que vencera um concurso de textos dramáticos para a rádio, e ao ver-me a boiar dentro do pijama do Ventura, rebentou numa gargalhada sem freio. Ao pinto acrescentou o calçudo e estava tudo dito.
Era um pândego com pretensões à vida artística e algum talento esbanjado em jogos florais — na realidade, era um adicto em jogos florais. Há jogadores que depois de verem desfalecer os alazões favoritos metem o selim às costas para poderem continuar a apostar: assim o meu tio Isidoro, um eterno Poulidor dos versos, que salivava a esmo. Mas dessa vez cruzara a meta em primeiro lugar.
O êxito foi celebrado com ginjinhas e biscoitos de gato. A peça, anunciou orgulhoso, chamava-se “Um Bigode para Três” e aludia a um dito com que a minha avó esconjurava a força da improbabilidade: “qual impossível, qual carapuça, se eu já vi um bigode para três!”. O que ele ainda não sabia, e pela qual seria mais tarde acusado de plágio, era que o dito da minha avó era o nome de uma peça portuguesa do tempo da Primeira República, a que ela assistira em miúda.
Para o meu tio Isidoro era a segunda grande euforia num ano. A primeira sucedera ao convite para fazer o relato radiofónico de um jogo de futebol na Rádio Renascença. Preparou-se exaustivamente, com exercícios à porta fechada, que por isso mesmo, nenhum membro da família poderia descrever. Só se sabia que ele se fechava no quarto em exercícios vocais, corporais, mediúmnicos — amoedando uma concentração de arrasar. A rua em peso contava os segundos que faltavam para a prova da fama e à noite no Café do Arco, o meu tio Isidoro, pleno de eloquência, prometia não gritar golo antes da bola estar reposta no centro do terreno para não haver enganos.
      E chegou o dia, uma partida para a taça, 16 horas à canícula: Freamundo-Casa Pia. Os ouvidos atarraxavam-se aos aparelhos de rádio e o sr. Diamantino Farinha, o vizinho de minha avó, limpou com um cotonete embebido em água oxigenada a cera do ouvido para não perder pitada na sua telefonia amarela, que a filha trouxera de Badajoz. Assim que o árbitro apitou eclodiu um bruá pela rua, numa descarga de saudações eólicas: a prova da fama.
O que a seguir se passou ficou nos anais do jornalismo: o meu tio dividiu o campo em quartas e quartos (ao todo, explicou-me ele mais tarde, em 128 divisões) como na rosa dos ventos, estabeleceu que as balizas eram os pontos cardeais e os cantos os pontos colaterais, e a bola circulava de leste para nordeste, enquanto o ponta-de-lança corria de sudoeste para norte, numa angulação de 75º graus, o guarda-redes defendia por se ter metido nos cornos do Bóreas, enquanto um tiro frouxo de fora da área era comparado a um Zéfiro esmorecido. Uma sarrafada de um defesa do Casapia valeu-lhe o epíteto, ó Adamastor, e a casa veio abaixo quando o meu tio Isidoro comentou ao segundo golo sofrido pelo Freamundo: “Arcanjo, o guarda-redes do Freamundo, é conhecido por gostar de golos bonitos!” Impôs-se um silêncio de muito calado na rua Arco de Carvalhão e só horas depois, já a noite se estirava sonolenta, é que uma trovoada de verão desanuviou as tensões.
A euforia desta vez parecia contudo ter um título de garantia e a garrafa de ginjinha marchou num instante — até eu tive direito a um cálice. Mas a minha avó reparou que eu participava menos que o habitual no gáudio familiar e vi-me obrigado a confessar o desgosto de não poder ver nessa noite o Festival da Eurovisão. Igual ao Festival da Eurovisão, nesse tempo de gatos pardos, só vir do Minho para fazer duas romarias anuais ao santuário do Cristo Rei — era impensável falhar.
     Foi contrariedade que não a abalou sobremaneira. Guardou um segundo de silêncio, pôs-me a mão no ombro, atou os seus olhos de um azul seco aos meus, e disse-me, Toninho, sei que é aborrecido não veres o Festival, nós não temos televisão, nem nenhum dos cafés do bairro e vai ser difícil irmos mais longe, tu não tens roupa e já sabes que as tuas tias não gostam de sair à noite. Mas para que não penses que fomos sempre pobres como somos hoje, eu vou-te con-tar a história da nossa família. Escuta — e puxou-me para si — enquanto a sua voz se perfilou:

«Vou-te contar como minha mãe me contou, e juro-te por ela, tão séria que tomou votos religiosos depois da morte do meu pai, e pelo meu finado marido, o teu avô, Henrique... escuta: que um filho me morra de saúde se isto que te conto não for a verdade...»
Oh, mãe, olhe que o miúdo assim adormece... — atirou, divertido, o meu tio Isidoro.
«Bom, então foi assim... — humedeceu os lábios com a língua antes de continuar — A primeira alminha de que há registo na nossa família foi devorada pelos gafanhotos, numa praga famosa que veio de Marrocos e só deixou de semear a lamúria e a miséria quando tropeçou no Douro, que é rio profundo e turbulento e engoliu os demónios um a um e um a um...»
Devorado, avó, inquiria eu.
«É uma maneira de dizer. Os bichos comeram-lhe as colheitas, foram-lhe às papas na barriga, acharam a agulha em todos os palheiros, deixando o madeirame areado como prata, aquela revoada ia do chão aos quarenta metros de altura e roía de baixo para cima, avôs gafanhotos afiavam a mandíbula na pata dos filhos, que por sua vez abocanhavam as inadvertidas entranhas dos netos, e os de baixo entravam nas narinas das vacas e era um ver se te avias, houve porcos, os poucos que sobreviveram, que durante mês e meio só obraram olhos de locusta, durante uma semana, já depois daquela desgraça, continuavam a cair do céu penas de grous, patos e cegonhas, roídos até aos ossos, de tanto correr de susto houve coelhos que mudaram de sexo, e só em Reguengos desapareceram seis homens e o sino da igreja. O nosso antepassado, o João Falcato de Noronha, perdeu cinco hectares de boa terra lavrada, uma vara de porcos e a tosquia das ovelhas que lhe apareceram absolutamente carecas e consumidas duma insónia que durava até à morte. O rei D. Filipe, o cão espanhol, lá se apiedou do povo e distribuiu uns luíses de ouro que não compensaram os prejuízos mas davam para vestir as vergonhas, que o desmazelo de muita gente deixou os cueiros às janelas. Foi o caso do nosso familiar, o João Falcato, que não aguentou ver a sua quinta devastada e abalou para Sines. Aí se estabeleceu no negócio dos cabedais — fazia malas, sapatos, cintos, selas, casacos, tinha uns mãos de ouro que a tia Albertina (a tia-avó que cheirava sempre a cola) herdou, e por isso ela trabalha numa fábrica de malas e carteiras. A miséria do reino foi tão grande que o rei Filipe, o cão espanhol, foi falar com o Papa Gregório, e este, num gesto de misericórdia alterou o calendário, de modo a que esta data funesta fosse apagada para sempre da memória do povo...»
Como é que se muda o calendário?, tornei eu, atordoado.
«É simples...- humedeceu de novo os lábios — passámos automaticamente de 4 de Outubro para 18 do mesmo mês, para nos ajustarmos, segundo as explicações oficiais, ao Calendário Gregoriano. Mas toda a gente sabe que na verdade essas duas semanas foram roídas pelos gafanhotos e disso fala o enorme silêncio que se fez sobre o assunto nas Crónicas do Reino. Foi a única coisa boa perpetrada pelos Filipes, e foi o que lhes valeu, se não os portugueses tê-los-iam varrido para os seus quintalinhos da Mancha. O povo é que é grato... Bom, continuemos, passemos por cima dos descendentes do João Falcato, que colaboraram com o cão espanhol. O seguinte membro da família que merece a nossa atenção é o Barão francês...
Francês? — exprimi eu, a medo.
O tio Ventura fora buscar mais um candeeiro a petróleo, que acendia, para alegrar as paredes com mais umas sombras bruxuleantes, e a guitarra portuguesa, que afinava, baixinho.
«Já estudaste na escola as invasões francesas? O barão Hypolite d’Argot, era fidalgo de muitos cabedais, aqui Toninho, no sentido de uma riqueza que atrai as invejas e as concubinas...»
Mãe...- atalhou, censurador, o meu tio Isidoro.
«Era assim mesmo, e se quisesse ser prolixa e descrever as casas dos criados da casa, as camas de dossel dos moços de mantearia e das cavalariças; os muitos pátios de gado em que a água caía dos telhados, os passeios dos cavalos, corredores, serventias, passagens, saguões, escadas, janelas, fogões, palheiros, casas de lenha e carvão, fornos, e mais oficinas do seu Palácio estaria ainda a ser avarenta. Ele e o Napoleão eram unha com carne. E percebe-se porquê, em 1805 oferecera ao Imperador uma contribuição de vinte milhões de francos para o exército. Qualquer coisa que hoje daria para pagar a ponte sobre o Tejo...»
O tio Ventura sublinhou o meu espanto com um acorde na guitarra.
     «Mas Hypolite tinha uma vida graciosa, liberta das paixões da guerra, e governada por duas inclinações benfazejas: o xadrez e a ópera. E no belo canto o nosso Hypolite tinha um béguin... uma paixoneta... a avó está a treinar o francês, não te esqueças, “béguin...”, ele tinha essa pendência por uma cantora de ópera contratada pelo Teatro S. Carlos, em Lisboa... o que incitava o seu gosto pelas viagens. Ora, tu sabes que em 1804, um Bonaparte ensoberbecido quis que as nações europeias adoptassem o bloqueio continental à Inglaterra, pelo que exigiu, ele não pedia, exigia, o encerramento de todos os portos portugueses aos navios ingleses. E vendo o seu amigo Hypolite aos suspiros pelos cantos do palácio, intuiu ali saudade da ave canora que gorjeava no S. Carlos e encarregou-o de verificar o cumprimento das disposições imperiais em Portugal. Hypolite ficou radiante, ainda que um tanto apreensivo, pois o seu mutismo nos salões não era unicamente fruto das longínquas moradas do coração, e reflectia igualmente a sua genuína entrega ao jogo de xadrez que mantinha por correspondência com o conde Tommaso D’Arcy, de Lampedusa.
Partiu o nosso Hypolite, de Paris, com uma esquadra de doze cavalos, um tenente, e dois correios. A trote, suave, pois Hypolite, que era de ideias muito definidas tinha uma regra que não transigia: não se podem fazer duas coisas ao mesmo tempo. E enquanto se mantivesse concentrado na sua partida por correspondência, o passo não podia ser veloz.
A atravessar os Pirenéus, uma desgraça: um relâmpago fulminou o cavalo que levava o tabuleiro, reduzindo as peças a cinza. Foi uma tarde de desnorte, pois apesar de cultivar as ideias claras, de recorte inapelavelmente lógico, Hypolite não era portador duma grande memória. Houve que endereçar um pedido de socorro a Tommaso D’ Arcy, que duas semanas depois lhe enviou um esquema do jogo, acompanhado duma certificação assinada pelo arcebispo de Lampedusa em como não o estava a enganar sobre as posições das peças. E não devia estar a mentir, pois Hypolite tinha um peão de vantagem.
     A urgência punha-se em achar um tabuleiro, mas aí foi que o seu tenente teve uma ideia brilhante. Eles levavam com eles um tosquia dor que, garantia o oficial, era capaz de caprichar nas tesouras desenhando na perfeição uma mosca sobre o nariz de um cão desenhado no pêlo do cavalo. E assim, fazendo desenhar à minúcia o tabuleiro e os últimos lances no dorso dos cavalos da esquadra, Hypolite, na travessia duma planície, a descer uma colina, numa subida a pique, acordado, a dormir, como moldura para a sua própria e involuntária distracção, teria permanentemente à vista as últimas evoluções das peças no tabuleiro, o que redundaria numa suma vantagem. E cada cavalo comportaria um mínimo de seis jogadas.
Hypolite nem hesitou, distribuiu vários luíses pelo tenente e pelo tosquiador, que de facto desenharia um perfeito cavalo branco em corrida no dorso de uma abelha (as suas tesouras eram amoladas hora a hora), e assim retomou, com vagares — à medida das exigências do jogo, das cartas de Tommaso, da requintada minúcia do tosquiador, dum pequeno desvio às oficinas de Goya — o rumo a Portugal.
Quando em 13 de Dezembro de 1807 Junot hasteia a bandeira francesa no castelo de S.Jorge, em substituição da bandeira nacional, o nosso barão passa o Zézere a vau, a cismar se movia o Bispo branco para Bg8+Rg6 5, em posição de ameaçar a Rainha preta. Feria-se a batalha do Buçaco quando o nosso antepassado, a 25 km da refrega, dava instruções ao seu tosquiador para avançar o cavalo para Cxe4!fxe4, que lhe auspiciaria o definitivo cheque-mate.
No dia seguinte, ainda enlevado pela sua vitória e habituado ao tutear sem freio com Napoleão, o Barão Hypolite comentou com o General Francês Massena: “É contornando o inimigo, mordendo-lhe o flanco, que se ganham as batalhas!”. Falava do xadrez, mas Massena julgando que ele criticava a táctica que lhe ditara a derrota no dia anterior, no Buçaco, mandou-o prender...»

Eu estava realmente fascinado, mas para desafortuna da História e da exímia narradora, no prédio ao lado, a cinquenta centímetros de argamassa, tijolo, caliça e tinta, começou a soar, na televisão, o hino da Eurovisão, que indicava o começo do Festival. Caíram-me duas lágrimas.
Houve um momento de paralisia; as maçãs-de-adão boiaram sem remédio num mar de esquinado silêncio. Não durou muito, o meu tio Isidoro levantou-se num grito de eureka e dirigiu-se à cozinha, voltando de imediato com uma série de funis de lata.
O meu tio Ventura apanhou a ideia no ar e, lançada a gargalhada, distribuiu os funis, enquanto se colocava a jeito, o bordo do funil encostado à parede, o ouvido encaixado na boca do funil, a guitarra ao peito e os dedos da mão no prolongamento do ouvido. Ficámos atónitos, mas rapidamente aderimos à ideia, eu numa lágrima convulsa de risos.
Começou a primeira canção, francesa. O meu tio Ventura, ao terceiro compasso já a acompanhava, reproduzindo a melodia, a minha tia-avó Mariana (a mais musical das três irmãs) imprimia o ritmo estalando os dedos, e o meu tio Isidoro improvisava uma letra que coubesse no molde que a guitarra desenhava:

«Via-a nos correios comprava um selo para os Bijagós.

E o mundo éramos nós naquele novelo
     sem bloqueios.

Refrão:

Vem, vai
     o coração não bate
num só dia
Vai, vem
comigo a Marte
num passe de magia»

E seguiu-se a espanhola, a alemã, a belga, a italiana... a portuguesa, num riso e êxtase pegados. As sombras na parede acompanhavam aquela desgarrada presa por funis ao coração lucilante dum miúdo e eu sentia que aquele velho aposento de caliça e canos rangentes era maior que o mundo, que nele cabiam jardins de cura às desilusões de uma vida.
Ainda hoje me recordo das melodias e de três dos refrões, e, nessa noite mágica, a única coisa que eu não vi do Festival da Canção foi os pés nus da Sandie Shaw.


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