sexta-feira, 5 de junho de 2015

UM DIÁRIO AFRICANO/ 1

souter


5/06/2015
O meu pai morreu com cinquenta anos. Na colisão entre um bagaço e os comprimidos que tomava para atenuar os rigores da esquizofrenia. Morre-se sempre por súbito descolamento da retina, é quase uma lei da natureza, o meu pai morreu nos vagares de ficar deslocado, a retina desde há muito só lhe reflectia os deslizes de terra interiores, o seu estado de devastação, como a zebra que se interroga sobre o motivo de ter sido  esquecida a meio duma estrada de alcatrão e ali se queda, paralisada, pisoteada. Já tenho mais seis anos que ele. E herdei-lhe os maus dentes, volto a ter um molar bailarino. É o quinto dente que se quer fora das gengivas desde que emigrei para África. O meu cabelo encanece, o que sobra. A barba está marmórea, triste como as neves de maio. Não consigo controlar os dentes, a vista, o cansaço. Não consigo ganhar dinheiro. Corrijo os testes dos alunos e só me apetece chorar. Como é possível que no terceiro ano da faculdade, com 24 ou 25 anos, alguém não saiba escrever “óculos” e grafe “ócluos” - três, sete, dez vezes, para que se note?


Hoje sinto que escrevo como terapia. Como fuga ao beco, na “libertação para dentro” de que falava Pessoa. De vez em quando, se encarrila, a alegria toma-me. Poucas vezes: descobri que detesto palmeiras e coqueiros – coisinha mais monótona não há. Uma palmeira, cuja sombra nem consegue acoitar um encontro clandestino, não chega a ser uma árvore - é um pêlo púbico agrafado numa folha azul.



A minha depressão seria justificada se eu pudesse dizer que a vida é um fardo. Mas não é, é uma alegria. Intensa, inapelável, única, mesmo a contrapêlo, como no poema A Última Carreira, do checo Miroslav Holub:

Esvai-se o zumbido do último autocarro
nas profundezas
da medula
nocturna.

É próprio das estrelas palpitarem
quando não explodem.

Não há outras civilizações.
não há senão o doce
medo galáctico
sobre um fundo de metano.  

Mesmo que o mundo só nos prometa o metano, somos o último passageiro de uma carreira cujo itinerário tem um sentido – daqui para ali. E é natural que tenhamos o frémito, e a orfandade do último passageiro, pois antes de explodirmos carregamos a luz.



É horrível querer estar sozinho e haver sempre um magote de jovens que na tasca mais esconsa te reconhece e equivocamente te quer tomar por “mestre”, ouvir sempre uma palavra inesperada, surpreender o brilho das ilhas. Ilusões. Invariavelmente riem muito na primeira hora, e têm o silêncio de quem encontrou um pangolim que lhes fala de coisas imemoriais, mas ao fim de uma hora já acusam a necessidade de voltar ao seu ritmo, aos seus assuntos. No fim, nenhum bosque levanta voo, e ficaste mais sozinho pois já nem te embriagas ou inflamas.  


Há destreza na colagem dos cacos?

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