sábado, 8 de agosto de 2015

PLANETA DA INSÓNIA, PRIMEIRO CICLO

o local onde começou a insomnia, há dois anos
 
 O meu amigo Ozo, a única pessoa com quem troco e discuto poesia, neste Índico desassombrado, acha que este ciclo de poemas é uma merda. Eu não, acho que é do melhor que consegui escrever. Mas, enfim, ele acha que a poesia só pode nascer do vivido, numa lide directa com o touro, fruto de uma espontaneidade sem escanção. Eu não, sou um “investigador de poesia” com toques de bizantino, que vai trocando os ladrilhos na parede até achar que a combinação dos brilhos, das cores e das sombras realizam a harmonia pretendida. Ele é intempestivo e preveniu-me, se publicas essa gaita, eu conto a verdade sobre ti. Não faço ideia daquilo a que ele se refere. Mas só para ver o que aí vem, vale a pena correr o risco:
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 1
 
Lá fora, adivinha-se, o vento
espumeja nos jacarandás,
refracta a alba, na leve ondulação
dos reposteiros, luz que alastra o couro
 
aos sapatos, de novo castanhos,
à capa do livro que caiu ao chão,
enquanto a alma, em atraso
torna agridoce a mostarda do sol.
 
Morre em carne viva, a noite,
e as palavras sonâmbulas,
dissipam-se como a chuva –
desmemoriadas  e preliminares.
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA / 2
 
Neste corpo só a letra é pública.
E tem na voz o seu endereço,
sobretudo em calando.
Imprimo no branco o camaleão.
 
Perdeu-se para sempre o jogador 
que, vendo girar a roleta, ficou absorto?
Assim começaria o meu poema
mas as metáforas, até as cabalísticas,
 
têm um prazo de validade, e distraí-me
à pesca noutros âmbitos, na saudade
daquele azul que o astronauta viu na Terra.
Subo a custo o meu Himalaia.
 
A cada poeta o seu. Mas não demorarei
na descida pela encosta oposta – o cimo afi-
gura-se duma indiferença descorçoada!
É do que padece o camaleão:
 
da indiferença de quem o vê. E
não à toa trouxe à liça o dissimulado,
para os rongas o bicho simboliza o infinito
e encaixa-se no meu epílogo. Sim:
 
os suicidas do sétimo circulo do Inferno
mudaram para o fundo dos oceanos,
ali se implantam em fetos e casuarinas
descomunais que drenam
 
a mais túmida esperança. Não é para já,
mas está iminente. O poeta Harry Martinson,
neste planeta da insónia, hoje dificilmente
repetiria: «Abraçamo-nos para fazer Deus».
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 3
 
A tempestade desta noite encheu
a terra de distracções. E interpôs
entre o passado e o presente
uma empanada folha de flandres.
 
A alba não atenuou as disparidades,
não restam dúvidas: enquanto a vida
se estende, a morte é abrupta,
se brilha é de uma vez, e ao redor
 
arma a bolha, uma vigília estriada,
ressentida, de credo congelado
na boca. Fica tudo mais claro
na periferia do mundo, onde,
 
sem garantias de que o sedimento
do humano encontre reciprocidade
para a sua extrema solidão,
o socorro tem a prontidão da víbora.
 
À enxurrada desta noite seguiu-se
a tua fuga, a limalha ardente
que pelos olhos me atingiu o coração.
Como pensar o equilíbrio
 
sem a totalidade, indagavam os vates
e as sacerdotisas que transmudavam
em orvalho o pasto da memória.  
Vinte e três desaparecidos, e derruída
 
uma ponte, que agora navega
em letras gordas, carnais,
no matutino. Onde, por acaso,
omitem a tua fuga. Com devoção
 
mística desejo-te o pior, xipoco
de pavor em troca dos inocentes
que deus encravou no Zambeze.
Em que nesga do destino
 
sobrevive ainda o amor
às chuvas de Janeiro?
Justo é o pensamento que perde
de vista o seu objecto.
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 4
 
É nestas ocasiões que falta o mar.
Acariciar o olhar no seu mosaico
indomável, embutir a pupila nas vagas
que autografam os molhes.
 
Uma boa hora desconexa, plasmada
na espuma que ressalta na pedra
e torna-me a alegria a palrar, volta-me
a franja a ser loura, o aro da dor
 
descalcifica.  Como um insecto, sacudo
a letargia e torno ao movimento, anguloso,
fosforescente. Não há punhais,
oh lá lá, exalação sombria que me ofusque,
 
a premonição dos derrotados não é mais
um paul que faz corpo com o que sou.
Depois duma copiosa borrasca,
para ganhar um metro de avanço à insónia,
 
para ser de novo o paisagista das elipses,
só o mar e a rampa azul  em que afoga
todas as comparações me restituem
o remoinho do sangue ao sangue.
 
Parece contraditório como o amor
o mar, porém só ele sossega as insónias
que aguilhoam na polpa dos rios
o canto das crianças mortas.
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 5
 
(Sem querer tramei a pequena aranha,
eis-me parte do seu destino.
Duma estirpe pequena, os seus palpos
brancos sempre activos sondavam
 
no ar resquícios do divino.
Trepava célere pelo braço da cadeira
e, supersticioso, quis afastá-la com a bic.
Não medi forças e esfacelei-a,
 
quase a separando em duas.
Deu três quatro passos, emaranhada
numa baba, antes de fazer looping
na mudez que petrifica. Lia
 
A Literatura e os Deuses, de Calasso,
e senti-me a mão do fatum,
a sua algébrica desmedida. Abriu-se
um hiato –  fechou-se um ocelo
 
de Deus? Boss, os bolos são sempre
de ontem, mas as crianças também,
ou não?, replicou desafiador
o empregado quando rejeitei um rim,
 
rijo como a serpente que ludibriou
Eva. Eis uma bizarra noção
de bem servir onde até os bolos
são lobos. E chega de zoologia.)
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 6
 
Em Kobani, os cães barbudos não entraram
e desataram a decapitar as suas sombras.
Estas coisas nunca aconteceram, mas existem
sempre, escreveu Salústio,
 
e é justo que aconteçam, e que importunados
pela impossibilidade de conseguirem urinar
nos canteiros de narcisos, jacintos, violetas,
rosas e tomilho da cidade,
 
ou de conspurcarem com esterco
a virgindade das resistentes,
os cães barbudos se castrem
antes de se enforcarem num fio de sangue igual
 
àquele com que decapitaram o seu amigo.
Os cães barbudos perderem o rasto de Sinbad,
Antes o crime aflorava como a cegueira pontual
de a quem inebriara a caligrafia das baleias.
 
Porém, a âncora extraviou-se, mata-se
por cinco segundos de emissão e enterram-se crianças
vivas no arabesco dos abismos - desapontar
horizontes é por ora a pedra angular.
 
E lapidam-se mulheres. Só a esperança
de que a reminiscência das estrelas mortas
se perpetue no canto dos grilos não
estiolou. Sim, há que voltar ao mar
 
para que o homem divagante esqueça
o perímetro da crueldade.
Aí, mesmo que a morte e vida façam
Um - chiça para os números - a alegria
 
é ainda o nó com que a porta
se abre ao vinho e ao amor
e escuda a casa do olvido, da térmita.
Porque hoje até no crime já há enfado.
PLANETA DA INSÓNIA/ 7
 
Pelo que sei os náufragos
um instante antes de tomarem
ares de carta selada
dão conta da extrema acústica
 
dos oceanos. Nem sequer dá tempo,
entre vagido e velório, de se recordarem:
que origem os desovou. É
o que me agrada, a inexistência
 
de uma ruga entre mim e
o desencadeamento do som,
puro derrame nas tintas
p'ras margens que o comprimem.
 
Que uma gaivota me arrepele
o ombro, na unção
de quem bica escória
na oleosa cidade de passagem
 
fascina-me; o silêncio verde
com que as algas descalçam
o meu olhar dá sentido
a tantas palavras gastas
 
como carvões a que não aflorou
lume... mas faz-me compreender:
não é verdade que as palavras
apenas encadernem o silêncio.
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 8
 
É bifronte o meu espanto, nem sei
porquê, se também é lúbrico o liame
entre anjos e asas, se entre beijo
e olho transita o oxigénio,
 
a mesma nuca branquíssima. Talvez
me pareça uma violência aceitar
que a palavra prazer ilumine
a trajectória térrea da minha boca
 
no teu mamilo azul. Julgo chegar-me
o espanto da ignorância sobre
a verdadeira natureza dos oceanos,
justamente no seu epílogo.
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 9
 
Umas vezes como Ariel, outras
como Caliban: não chegamos
a ser humanos. Mas enreda-me
o vento na esplanada como o touro
 
ao toureiro, e templa-me, congruência
súbita, o destino. Percebo finalmente
porque sempre me atraíram
os filhos de Eolo: o ar que gazua
 
no coração do pombo pulveriza
o azul,  deslocaliza a atenção de Deus.
A verdade é um tigre com inúmeros
cornos, uma vaca desprovida
 
de cauda, o par de girinos que agita
alacremente a cauda dentro do frasco
de compota – fomos prevenidos.
Mas é assim que vejo as coisas,
 
meu amor: as câmaras captam
a nossa fuga mas não podem impedi-la.
Abracemos o vento, como Ariel,
ou como Caliban. Radiantes.
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 10
 
O cego mira a flor, a flor
sorri. Alucinação que fende
um mar de luz, ou algo
que despende a vida, até
 
que pela ausência um trovão
lampeja? O céu não pode
impedir-se de ladrar,
mas nós podemos calar.
 
Se de novo olharmos o mar,
humildes, e nos seus corais
dissiparmos de novo a crueldade,
como a flor que floresce
 
para o cego. O que nos sobressalta
é o apego das areias, esquecidos
do vento, até que a doença
lampeje? Voltemos ao mar.
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 11
 
Quem lançando a flecha
não vai nela? O fito
não era burlar-me quando
ateei a fogueira mas aquecer-me
 
no breu, invadir a realidade
inteira. Se os poemas já não são
o dragão em visita, problema
dos poetas. No que me cabe,
 
não quis encardir-me ao sol
num apeadeiro fantasma, onde
até a memória dos comboios
se obstina em calar.
 
Quem caído no visgo
do poema desgruda sem dor?
O pássaro que cai dentro do canto
afoga-se no cântaro e palavras
 
há que abrem um postigo
enquanto outras ejectam
a paisagem. Restituir o sangue
ao sangue é que é mais caro.
 
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 12
 
Cria-se, este mundo, à medida
que nos orientamos para ele.
Jonas desarrolhou o Leviatã
e Melville serviu-lhe o vinho.
 
Não é uma questão táctica
mas de desencadeamento
da crença: arder como algas
num convés é que não.
 
Cria-se o mundo mas fica
imerso se o conservamos
aquém da sua intensidade,
e lhe preterimos o sujo. 
 
É do que me culpo, de não ser
Macwhirr para aferir
a grandeza dos tufões,
de não ser tubarão lancetado
 
pela beleza dos corais.
Esta rédea curta foi-me 
afastando dos oceanos,
das suas cartas e fossas
 
abissais (e até na mesa,
interditou-me a gota:
peixe, frutos e sereias),
e criou um mundo portátil,
 
de canivete-suiço, que se recorta
à medida do meu extravio,
na vã esperança de que o rio
não se dissolva no mar.
 
 
PLANETA DA INSÓNIA/ 13
 
Olho perdido nas pregas da obediência
ao vento. Com que idade se deixa de cantar,
Victor Hugo, e se dissimula na paródia
a cobardia? Versos pós-modernos,
 
estes, onde a terra capitula sob os nomes
como um campo sob as moscas.
Vem o homem a nós da parte do deserto,
lia-se, e acreditava-se, sentia-se-lhe
 
o hálito de gafanhoto, a aura verde
com que ele matava a sede das areias.
O mar não era então a plácida Delagoa Bay
em carneiros aos pés dos veraneantes
 
e o infinito deixava-se empurrar
como uma porta. Eu sou como aquele
que encontra uma esmeralda, dizias,
e a inveja dribla-me três vezes
 
sem conseguir ao menos travar-te
em penalti. Porta entornada
aos soluços é mais o meu esti-
lo, oblíquo, gaguez de ébrio
 
que se agarra à garganta da noite
para não cair no vácuo das estrelas
de papelão. A fábula
é o meu domínio mas amo
 
os guindastes com a fraqueza
dos anémicos, certo de me faltar
a astúcia pronta da raposa, o liame
que surpreende na agudez da sua garra
 
o clamor dos vivos. Viver à véspera
dos epílogos não ajuda, no planeta da insónia,
sobretudo quando se pressente
inacabado o gosto do cravinho na língua.
 
 
 
 
 
 
 
 

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