terça-feira, 28 de abril de 2015

SETE FACETAS DO TEMPO ENTRE OS CORSÁRIOS DA MACANETA




Do livro Não se emenda. a chuva, escrito para comemorar os meus cinquenta anos e lançado em 2011, numa edição reduzida e praticamente invisível, este ciclo de poemas que redigi na praia da Macaneta, meu habitual refúgio, a 40 km de Maputo


                                                                                                 para o José Capão e a Isa

1
É nítido: as ondas antes de rebentarem espreguiçam
as suas malhas de leopardo.
Segue-se um plaino onde em borbotões correm
os mantos de água para a praia.

Aí me sento, corsário aposentado, rebolando-me,
consoante a força das correntes, enquanto, sondando
sob a areia o filão das amêijoas, as mãos apagam
as linhas da vida.

Como se exaure macio, o tempo, neste ajuste 
de ombros e quadris à espuma,
esquecido de si mesmo. 
Os bivales são escassos 
(iniciada tarde a colheita),
comparados com o ventre líquido dos felinos.


2 (madrugada de 1 de Janeiro de 2010)

Já era assim quando fui cão.
E hoje cheira-me que volto a transigir em solo
desconhecido: amo, é tudo,
ainda que o decoro com que revisto a brutalidade
duma tal decisão
(muda-se o ano, muda-se a vontade),
possa anunciar excelsa a vigota do temor.

E se o tempo me volta a desenganar?
Alça a perna, urina contra a casuarina. O frescor
da manhã nas partes gagas é ciência certa.


3
«Ao fim de catorze anos de casamento, entregamo-
nos como duas crianças envergonhadas pelas suas
faltas e talvez por isso nos amemos…», leio
- como isto fala de nós, meu amor.

Descrever-te os pássaros na Macaneta?
Precisaria de ser o flautista de Hamelin,
que pelo sopro arrastou ratos,
crianças, chaminés e soldadinhos de chumbo.
Mas olha, tinhas razão, devia ser proibido adormecer
sem ter o mar por fundo.
Noutras condições parece-me sempre o amor modesto.


4
A ideia de que o tempo pudesse ser massa folhada:
uma ideia de garoto,
competia ainda o mil-folhas de domingo com o
reclamo do primeiro beijo,
sonho fatídico, onde me transmuto ainda.

Não se retalia. Pode-se até esquecê-lo, emprestar-
lhe a sinusite, deixá-lo a debulhar lágrimas
com a fotografia, à beira da catástrofe
onde um morto lacera, de olhos verdes.
Mas, incessante, sinuoso como o pulmão que
sincroniza um bando de flamingos, hás-de voltar a ele
como ao pobre nome que percutes
contra os dentes, ansiando por tertúlia.

Não se retalia, ao tempo não se retalia. Pois
quem vive de travões emprestados? Como eu,
nessa noite especial, ondulante,
em que forcei a insónia para ouvir pela rádio o
último round entre Ali e Frazier
– dois lençóis friáticos treinados para ficarem
num fiapo muito antes de lhes chegar traça –

eu, um miúdo ainda de todo alheio
aos knock-outs de Cortázar, à malsã
auto-piedade do Sísifo de Camus, às laranjas azuis
de Éluard, criança ainda de todo inepta
para deduzir que contra os relógios só o alho porro
e, sobretudo, não picar com a mesma faca amor e ciúme.

E disposto a confiar nele como na vitalidade do nariz que pinga,
e a incutir: você é quem sabe, você faz o preço!
E o tempo, sorna, de sorriso a tiracolo, a descarnar-
me as gengivas, a enrodilhar-me nas suas veias de lobo
(- a sua pata de papelão não perdia de vista
o meu mealheiro sobre o frigorífico),
enquanto Ali - grafitos indeléveis no céu
de Órion - ginga ao canto, furtando-se
ao amasso de Frazier, e resiste,
uma e outra vez, dando enlace e realce
ao delicado equilíbrio das estrelas ascendentes.


                                                       foto de paulo oliveira


5
Napoleão tinha um belo chapéu mas a sua maçã
de Adão não cabia no colarinho da paciência e no labéu
de Santa Helena esqueceu que ver é separar.

Foi o que o ensandeceu: tomar a baba do tempo
por aves de passagem.

Largo a revista de generalidades onde me inteirei
das adversas flutuações da história e vou ao quarto buscar
Os Sofistas, de W.C. Guthrie, para o debicar deitado
na rede enquanto num soslaio espreito o coreto
do mar, nas árvores.

Mas, ao lado do alpendre, nas minhas costas,
A Isa de sacho, desbasta raízes e pedras,
num canteiro de solo tumultuado, agreste,
(a construção é recente) e pergunto,
tens instrumento para que te ajude.
Eis-me de ancinho a puxar o manto de areia branca,
a brita, os inóspitos bezouros de cimento, até que
assome 15 centímetros abaixo
a terra vermelha - ver é separar.

Martelo com afinco o escopro para rebentar as
línguas de betão que o cansaço
e o desleixo dos operários
deixaram escorridas no bordo da casa,
e depois volto a puxar a areia prenhe
de pólipos rijos como cobras,
a fim de restituir à superfície a terra macia,
ávida de augúrios e sementes.

Hora e meia nessa tarefa, até os músculos
se estilhaçarem como pirex.
Tomo um merecido duche e enceto finalmente a
leitura, na rede, o mar alto a rebate nas árvores.
E descubro-me mais focado e atento ao recorte
das palavras, à irradiação ou à sua amolgada sombra.
Mais certo do que jurava Rilke: uma metáfora exige
quilómetros de caminhada, o faro
apura-se no esforço físico.

E ao ver a Isa - ver é separar – a desbastar as raízes,
uma hora depois de, derreado, me ter acostado,
sei que Protágoras mentia:
a existência dos deuses não
é suposição indemonstrável, pois afinal
quem mais lhe poderia acender nos braços luzeiros
de tal energia? Intuo: só o amanhar
da terra, penteá-la com ancinho,
esfiapa o tempo.


6
Mais meia-hora da carga valente que caiu e podia
apresentar às miúdas o general Custer.
A Luna dançou à chuva, a Jade
adormeceu no fulcro
da tempestade.
Eu, dado o adiantado da água temi que o dragão
sem freio do tempo nos mergulhasse,
a mim e à amada, nas comportas do amor para
nos cuspir depois nas suas margens
já sem o escalpe da memória.
O Capão, depois de examinar no tecto a qualidade
da construção – nem uma gota digna de um dedal –,
mais tranquilo, explica à Isa as manobras
do seu exercício de Sudoku.
Encho a fornilho do cachimbo com o tabaco
que me trouxe Sitting Bull, de tudo aliviado.



7
No meio dos raios e coriscos da hirsuta moita
que desbasta, lembra o Capitão Haddoc,
a indómita alegria com que cachimba e soluça num «hips».
Tomado pela mesma tenacidade expande o José Capão
a sua sombra nesta duna, onde desfaz nós e refrigera
uma vida de disputas; ora com a tesoura de poda,
ora traçando os caminhos da laje,
ou inquirindo se mantém ou elimina
a enorme teia de aranha que envolve em núpcias
e promessas metade da laranjeira, ora
fechando uma pálpebra por outra na rede,
enquanto o mar da Macaneta
craveja na carne das estrelas o esvoaçar das borboletas.
O que me faz suspeitar que o tempo
por vezes rende as intempéries.


segunda-feira, 27 de abril de 2015

ZAMAGNA E OS RAIOS DE SEU JUCA



Tudo devia ser mais rápido na vida. Tudo. Se um feto ultrapassa o tempo ideal (os três meses) para ser extirpado por um aborto devia forçar o seu nascimento de imediato, ressurrecto dir-se-ia.
Para quê suportar o trauma de nascer apenas nove meses depois da gestação, com a sensação de que o nosso restaurante favorito fechou para obras?
Talvez por isso, numa postura simétrica, de combate, me tenha negado nove meses a falar – do quê, se eu próprio me traía à primeira oportunidade – mas à posterior concedo que afinal não foi consolo.
O problema é que sou claudicante, um verdadeiro Tônio-Toco-A-Conta-Gota, que até da hipótese do plural se cansa.
Isto para explicar que recebi um livro maravilhoso e de que quero falar há dois meses e que tenho andado para aqui mula, sem saber como lhe pegar, quando afinal é só agarrá-lo pela crina e deixar que ele nos marque o trote.
O livro é this one, autor,

SEU JUCA SEM FIO

título:

ELES ANDARÃO... EU ANDORINHA!»

O título como explica no excelente prefácio Marcantonio Costa parte do trocadilho que montava dois versos do famoso “Poeminha do Contra” de Mário Quintana, onde se lê:

«Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho
Eles passarão...
Eu passarinho.»

Este poema conheceu a sua variação paródica em Evandro Sousa Gomes, que grafou:

«Todos aqueles que por aí vão
No caminho jogando pedrinha
Eles andarão... Eu andorinha!»

Terceto que serve de epígrafe ao livro de Seu Juca Sem Fio e que justifica o título.
Quem é afinal este simpático anónimo sem fios com nome de alcunha?

Um poeta-andarilho, eterno vagabundo que só tem de seu os vaga-lumes do caminho e que até de ser “guardador de rebanhos” abdicou, pois como explica num haiku, «TODA ESTRADA FINDA/ ANTES DO FIM, SE PERGUNTAS/ AONDE TE LEVA»..
Este poeta-andarilho é um seriíssimo companheiro de travesseiro (que não de sonhos, aí cada um tem os seus) do humorista, poeta e ilustrador Tuca Zagmana.
Tão sério que já não sei qual é a fonte e qual o encanado, entre Tuca e Juca, sendo apenas certo que ambos gostam de andar pelados, como duas torneiras em flor, cientes de que «ÁGUAS PASSADAS NÃO PERDEM O VINCO». 
Seu Juca é um trânsfuga, da natureza que ele mesmo retrata noutro haiku: «EU SOU ESSE MENDIGO/ QUE VAI PASSANDO POR MIM/ SEM PEDIR ESMOLA.»

Tuca – que toda a vida foi um polinizador de mitos e um sabotador de paisagens de licra, inventou “gente” e mil pronunciamentos impossíveis (sem saber li-o centenas de vezes na MAD brasileira), num fermento que não cessa e que hoje se pode apalpar, trincar, saborear e interpelar (já que ele é também um generoso aglutinador de afectos) no seu blogue Desinformação Selectiva (tucazamagna.blogspot.com) – resolveu aos sessentinhas (ele que como eu parece ter trintinhas) começar a publicar a sua obra literária.
Numa douda e delirante entrevista em 2012 (http://roxo violeta.blogspot.com/2011/12/os-humoristas-sao-as-pessoas-mais.html ), explicou-se o autor:

«Minha cabeça é uma verdadeira cabeça-de-porco, com mais de 30 pessoas amontoadas dentro. São elas – além do blogueiro Tuca Zamagna, do jornalista, cronista e humorista Antonio Claudio Zamagna, do humorista Tutuca, do ceramista Tuca Z. e do roterista televisivo Zamagna, o compositor e letrista Aranha, o humorista e cronista Pedro Brás, o sexólogo Dr. Eustáquio Pinça, ex-editor da revista erótica Eros, cuja equipe era formada por mais cinco pessoas, entre elas os gêmeos El Zamagna (roteirista de pornofotonovelas) e Elza Magna (astróloga responsável pelo Eróscopo – e hoje minha parceira de blog),
Há também o arquivista e etimólogo BUARQUE, Vando (autor da coluna Aquivocabuloso); a redatora de necrológios Carola de Athaúde, o cronista social Paulo Peroba Grande, que assinava a coluna Perobão, na revista Mad; o crítico musical e saxofonista de rock-melequeira Lambrecão; o fabulista portugárabe Falabu Bulafa Lafabu, autor do livro “!ALBUFAS SAFUBLA! – Fabulas Bufalas”; o canalha do bem Teophanio Lambroso, vulgo Teopha... e mais uma 14 ou 15 figuras, inclusive Anga Maz, que assinou os meus primeiros textos publicados, aos 16 anos, e há dois anos virou a minha parceira de blog Anga Mazle, deixando de ser anagrama de Zamagna para ser anagrama de Elza Magna e  El Zamagna.
Já ia me esquecendo do Caio Julius Caesar, o Cesinha, um vira-lata poeta (e não um poeta vira-lata, como eu), autor do livro “Poemas de um cão sem dono”.»

Agora, peço ao leitor que esqueça todas estas facetas referidas, este caudal de humor sôfrego e melancólico e que mata em surdina, que esqueça o ecletismo e as suspeitas que sempre provoca, e encomende este livro,
dado que é absolutamente um marco na actual poesia brasileira.
Seu Juca é o anti-brega, e tem neles fundidos o cinzelar rigoroso de Melo Neto e a veia aforística do argentino Antônio Porchia, o famoso autor de “Voces”.
Há poetas que têm cisma, poetas que têm cisco, e poetas que vêem coriscos – Seu Juca reune os três, e daí que o livro explore três veios, o haiku, o poema livre (reticentemente lírico), e os aforismos.
Deve dizer que em língua portuguesa neste momento só conheço um cultor de haicais à altura de seu Juca, Jorge Sousa Braga, pois estes são lapidares e inolvidáveis. Vamos a exemplos:

«SOMBRA

Sou de entrar em ostra
pra pedir em casamento
a sombra da pérola.

CARROÇA

Basta o carroceiro
desatrelar os cavalos
pra carroça voar.

ESTRELAS

Nada sei da noite
senão o nome de estrelas
que já se apagaram

CONSELHOS

Não ando até o mar
para admirá-lo ou me banhar,
só pra ouvir conselhos.

NÃO

Mundo, insano pasto;
passa boi, passa boiada,
só não passa a fome.

AVE!

Ave, matemática!
de uma andorinha se fazem
quantas avestruzes?

CAVALO

Eu tive um cavalo
que só pastava a contento
se montado em mim.»

Cada um inventa o Alberto Caeiro que pode, se para tal tiver dentes, uma espécie de reserva moral, a partir do qual um espírito pode corrigir a vida e soltar os seus afluentes.
E gratos devemos nós ficar, pois SEU JUCA SEM FIOS não oferece uma gordurinha, um lugar-comum, é um tratado de contenção e de (sobreleve-se o paradoxo) desprendimento.
Como diz Marcantonio «na poesia de seu Juca as palavras não enlouquecem (...), não dançam como bacantes nem deliram ou desmaiam (...) O ritmo é evidente (...) O poeta está no comando da condução, não como um pastor árcade, mas um andarilho que se observa enquanto anda, compondo um diário afectivo suas andanças em imagens».
Não há descuidos, antes uma tensão oficinal esmeradíssima como em Melo Neto,embora ao mesmo tempo no verso/texto resplenda a grande liberdade que advém da sageza e daí referir-me a Porchia, nestes artefactos poéticos que armam uma espécie de anti-poética, como Nicanor Parra a trilhou (- seu Juca repudiaria tanta biblioteca, mas como eu ainda tenho fios...).
Junte-se a este caldo o Cioran, mas desta vez no humor buñueliano que o autor aprecia e teremos o tom dos aforismos, dos quais só posso transcrever alguns dos mais curtos:

«Durante o coito, o pênis é um órgão que pertence aos dois amantes.

A palavra escrita é a palavra falada vestida de um silêncio justo e decotado.

Tenho sido religioso muitas vezes na vida. Mas só quando bebo mal. (Certa vez, durante um porre atravessado, me vi entre Deus e o Diabo – os três tentando fazer um quatro e se estabacando de cara no limbo infecto de um banheiro de boteco).

O pior cego é aquele que não lê as entrelinhas em braille.

Certas pessoas só encontram a pessoa certa quando escolhem errado.

Pensar é como montar certinho todas as peças de um quebra-cabeças. Pensar bem é montar da melhor forma possível um quebra-cabeças no qual faltam peças.

A moda, felizmente, é como a passadeira e a uva desidratada: passa.

Os olhos são capazes de fazer tudo o que a boca faz, menos ficar em silêncio.

O que eu mais quero na vida? Ficar invisível. (Por enquanto, o mais próximo disso a que cheguei foi me esconder dentro de mim).

Quatro coisas íntimas que sei slobre os bichos: 1)  a bôta bota chifres no boto com seus botões; 2) tamanduá t’amando a tamanduá, 3) se rola rolo amoroso, o tatubola desenrola a rola, 4) o reto da galinha é oval.

Se alguém te chama de animal não retruques. Que sentido tem discutir com um vegetal ou mineral?

A poesia é meu deus. O diabo são as palavras. »

São cento e trinta páginas de uma factura que nunca relaxa ou desmerece e coerente do princípio ao fim, o que mostra bem como Seu Juca Sem Fio é um heterónimo de mão cheia, nascido de um espírito dispersivo e neo-dada.
O livro encontra-se à venda na net. No próprio site do Tuca. Não deixe de comprar que o fruto da venda servirá para o Tuca Zamagna, o ortónimo, poder editar os seus “Contos de Réis”, tarefa urgentíssima.
Não falte à chamada... e senhores editores (portugueses), menos distracção, por favor.   
    




domingo, 26 de abril de 2015

KENNETH WHITE, UM POETA ANDARILHO, EM HONG-KONG


Traduções minhas de um poeta, que me fascinou desde a leitura de A Estrada Azul, e de quem fui coleccionando livros no sonho de um dia lhe traduzir poemas, até que finalmente me atrevi 


CENAS DO MUNDO FLUTUANTE
                                             para o Paulo José Miranda, que conhece este mundo

1
Fiapos de bruma, brancos e pegajosos, retocam a baía
e um velho junco acomoda-se
pesadamente ao seu caminho –
dava tudo para não perturbar esta mansidão…
mas já o dia alça consigo as gruas giratórias,
as pessoas apressam-se e tossem, os motores
e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones
- Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas


2
Espreite-se agora o mercado do peixe:
como cintila o sol vermelho
nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias,
tubarões, barracudas e serpentes do mar,
enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso
que pescadores exaustos até ao osso acendem
para agradecer a bondade da Rainha dos Céus
e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes


3
Tilinta um vozear cantonês
sobre um amontoado de faces amarelas
(lado Hong-Kong e lado Kowloon),
o ferry-boat aberto aos ventos
atravessa o verde estreito
por entre juncos, chalupas e wallas-wallas:
jornais impressos em vermelho e negro
e expostos às lufadas do mar da China


4
Uma secretária privada
(«privada, a que ponto?», inquietou-se quando lhe deram o trabalho),
de vinte anos, bonita como um óleo (sem o brilho plástico dos posters),
com cerca de três mil dólares (HK) de remuneração ao mês
e um apartamento só dela em Happy Valley,
amante de um próspero médico local,
e que sonha vir a ser estudante no Hawaii
- ei-la, acotovelada no lufa-lufa das horas de ponta,
no ferry-boat da manhã


5
O vetusto e encardido pedinte mongol
desce do seu poleiro
nas colinas de Kowloon,
levado pelo peso do seu longo e escorrido cabelo,
e, rindo sozinho,
calca o passeio com os seus pés nus
deixando atrás de si um rastro de vazio,
uma larga onda de riso e de vazio
que reflui até à Montanha Fria


6
No refrigerado escritório de um arranha-céus
acaba de chegar a uma linha de inventário
um milhar de caixotes com abalones mexicanos
e uma tonelada de coelhos chineses
é expedida noutra – enquanto nas ruelas
reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong
por entre um estrelejar de frituras, o fedor
dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos


7
No seu encavalitado gabinete em Mody Street
“Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês)
atende a sua próxima fornada de clientes
e afiambra-se a vender-lhes fatos, relógios, malas
 – «sou um topa-tudo» -
e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério
nos seus barcos-flores e no seu penumbroso expresso
onde se apalpa a rodos uma pequena vizinha nua
todos os cinco minutos


8
Espreguiçado à sua vontade,
coçando as costas contra um pilar do molhe, em Kowloon,
Ken Cameron, vagabundo
abre o South China Morning Post
e lê o discurso que um general inglês
proferiu num jantar do Rottary Club
- passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas
de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura


9
Com dois novos scripts sob o braço:
«Os Matadores de Canton» e «Assassinato em Macau»
(sucesso comercial garantido a 100%),
Brooklin Joe, bigode mate e fato branco,
sobe a Nathan Road pelo colarinho azul da tarde
enquanto a sua amiga, nova sensação nas passarelas,
insiste em fumar o cigarro que lhe dá náuseas
(«somos gente de Hong-Kong, nada de política…»)


10
Eis Scott Hawkins, escritor
muito rodado em toda a Ásia,
sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui,
uma garrafa de uísque ao alcance da mão
e um caderno novo aberto sobre a mesa –
na primeira linha lemos:
«o Rosto do vento do este»
e abaixo desta: «um romance impossível».


11
Ao cair da noite, as ruas são estriadas
pelos reclames em néon, negro
bailado de ideogramas: uma loura holandesa,
numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios
aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo
para marinheiros ianques empanturrados de cerveja;
enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico
se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem  de Hong-Kong


12
Um cinema em Kowloon:
no átrio, laranjas descascadas às carradas,
castanhas que fumegam ao ritmo do abanador;
um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango –
na imensa sala
o vizinho fuma como um danado e cospe no chão
enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra
e as heroínas gemem no écran gigante



13
No seu apartamento, num décimo andar
dos arrabaldes -
esteiras atapetam o chão, à japonesa,
mas num canto vê-se um pi-pa chinês -
Christopher Cheung
(«não sou um artista, eu sou um ser humano»)
serve-se de um copo de maotai
e sonha com Kyoto


14
No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho:
Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário,
gala sem esperanças
a baixa empregada de saia fendida
ou segue às vezes uma mulher no passeio
colando os olhos à linha dos slips sob as calças,
depois regressa ao seu quarto, inconsolável
com o seu magazine ilustrado


15
Lá em cima em Aberdeen
um rato lambareiro esgueira-se para o buraco
sob as pranchas de um restaurante do cais
os últimos jogadores bocejam e cospem,
num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes,
enquanto dois juncos maciços, a popa alta,
lavram as águas sombrias da noite
farejando a rota dos antigos lugares de pesca. 














terça-feira, 21 de abril de 2015

TANTO PODE ACONTECER ENTRE AGORA E NUNCA

carlo carrà

Tem o JL uma secção que é uma espécie de diário, escrito por escritores, a pedido. Enviei há um mês o texto que me pediram e nêspera. Calado Fundo, como um cabo-verdiano da minha meninice. Foi pedido da editora um esclarecimento sobre a falta de resposta e nêspera. Eu sabia que em vinte livros publicados, só sairam coisas sobre mim no JL quando escritas por «intocáveis» como o Urbano Tavares Rodrigues, o Carlos Porto ou o Listopad. De resto silêncio. Creio que nem os quarenta livros que publiquei como editor – e publiquei uma série de gente que hoje está na berra e alguns são articulistas do jornal – tiveram direito a uma linha. Again. Nem mesmo quando escrevi um livro com a Maria Velho da Costa (creio que esta senhora escritora é insuspeita de idiota), houve a excepção à regra. É no mínimo indelicadeza. Para mais (e talvez isso explique) fui redactor da casa. Mas aquilo de que mais me penalizo é não ter dito logo que não. Aqui deixo o texto que enviei,


TANTO PODE ACONTECER ENTRE AGORA E NUNCA
António Cabrita
10/3/2015
Dia de lançamento do Éter, na Barraca, com apresentação de Luís Carmelo. Logo saberei se terá valido a pena ter-me deslocado 9000 kms para um acto de reencontro com amigos, inimigos e fantasmas. Releio no caderno que havia esquecido em casa da minha filha, a história que, há dois anos, contei no lançamento da edição portuguesa de A Maldição de Ondina:
«O pai de Rousseau, o Isaac Rousseau, foi relojoeiro num harém, em Constantinopla. Eis tarefa para uma vida. E uma tarefa tão material, dado o tempo ser “a morte no trabalho”, como imensamente obscura.
Porém, viu-se o pai de Rosseau obrigado a regressar a Genebra por rogos da mulher, Suzanne e engravidou-a, para depois assistir ao sobressalto de vê-la falecer no parto de um, veja-se a ironia, bebé enfezado e doentio. O próprio Jean-Jacques.
Dizem os relatos que embrutecidos pela nostalgia, pai e filho se dedicaram ao culto da ausente Suzanne, e à leitura da grande colecção de romances que ela deixara – acumulada durante a estada de Isaac no harém oriental. 
As coisas impensáveis a que podem levar as badanas de um harém!
Quando esgotaram esta biblioteca, bulímicos, concentraram-se na do avô materno, que o muito jovem Rousseau virou, como se fossem líquidos.
Mas suspeito que este jovem educado um pouco ao deus dará e com um pai que só lhe presta atenção por saudades da falecida, há-de ter chegado à adolescência e, no esplendor da sua primeira masturbação, embatido com o seu primeiro mistério metafísico: o que faz um relojoeiro num harém?
Qual é o verdadeiro marcador de tempo no serralho? E, talvez a mais vertiginosa das perguntas: um relojoeiro num harém não se sente afogar numa espécie de infinito, de sémen incoalhável, que impede qualquer regularidade na medida?
Que podia o embaralhado Rousseau imaginar, para se safar a tal vertigem, senão a hipótese de tornar-se “um bom selvagem”, numa pulsão-em-flor que que lhe permitisse evadir-se de tudo o que dava sentido aos ritos e ao cumprimento das horas.
Pressinto que Jean-Jacques Rousseau, de repente, contra o pai, aspirou à hipótese de no futuro vir a ser amante da Debra Winger ou da Eva Mendes, para nunca por nunca lhe seguir a arte de relojoeiro.
É aqui que nos encontramos, e onde eu deslindo o começo de um princípio para a arte, até pelo motivo que se segue: há arte quando se encontra mais do que aquilo que foi perdido (Elias Canetti).»

 11/03/2015
Ouço no café uma divertida conversa entre reformados. Diz um deles: procurei toda a vida inventar um “mamógrafo”, o aparelho que medisse a capacidade de embriaguez de uma boca face a um mamilo.
Contudo, a anedota não alivia o peso de constatar que os jornais estão pejados de casos de violência doméstica. Sou muito mais sensível a esta questão desde que, em 2010, escrevi oito vídeo-reportagens sobre o tema e entrevistei 300 vítimas por Moçambique inteiro. Encontrar Portugal mergulhado numa escalada do mesmo tipo de crime é lamentável. A não ser que seja mais um caso de “irresponsabilidade dos media” e que se repita aquilo que em 2003, 2004 se passou com a pedofilia, quando a comunicação social traumatizou uma geração de pais e crianças, enchendo-a de medos. Seja qual for a resposta, é medonha.

 14/03/2015
Boa, a entrevista de José Gil, no I. E lê-se nela: “estou convencido de que Fernando Pessoa estava constantemente em estado de trauma”. E acertou. Para quem, como eu, vive na África Austral sabe que a coisa é mais do que provável. Neste território passou FP o período mais extenso da sua formação, no bordo de outra língua, e sob o assombro de vários cadáveres familiares. Vive-se (ainda hoje) nesta zona um quotidiano atravessado por ondas sísmicas incessantes e onde os paradoxos são, além de experimentados (não são construções mentais), irresolúveis: suponhamos que a vida, aí, nos convida para sermos o “compére” de uma tragédia. Ao confronto do sensível Pessoa – dos 7 aos 17 – com esta realidade polisaturada, em Durban, seguiu-se o regresso de um jovem cultíssimo a um país provinciano, que estava então ao nível de Moçambique de hoje: 50% de analfabetismo e 75 % de iliteracia. O que dá uma solidão danada, que não ajuda à mitigação do trauma que se traz de trás. A bebida então pode ser um paliativo, um modo de escandir o cinismo a que queremos resistir.

 15/03/2015   
Preocupado com o clima que vou encontrar no meu regresso a Moçambique, leio no Canalmz de dia 5, e ainda a propósito do assassinato do constitucionalista Gilles Cistac, o reitor da Faculdade de Direito que pendularmente lembrava às autoridades que Moçambique era um Estado de Direito: «“A Comissão Política repudia e distancia-se das acusações daqueles que, recorrendo a manobras dilatórias, acusam a Frelimo de ser responsável pela morte do académico.” Para o partido no poder a sua responsabilização pela morte do constitucionalista visa “pôr em causa a governação da Frelimo”. O partido Frelimo felicita no seu comunicado a Polícia da República de Moçambique pelo trabalho que está a fazer no caso. Recorde-se que ontem a Polícia recebeu ordens para mentir descaradamente dizendo à imprensa que Gilles Cistac foi morto por um cidadão de raça branca. “Recebemos ordens superiores para dizer que Cistac foi morto por um branco para afastar as acusações de racismo que andam na imprensa”, disse-nos, na manhã de ontem, uma fonte superior da PRM. E, de facto, na tarde de ontem, Arnaldo Chefo, porta-voz da PRM na cidade de Maputo, veio a público dizer, sem qualquer prova, que quem matou Cistac foi um cidadão de raça branca». O Canalmz é um jornal tendencioso, mas o clima está dado. Que dizer?

16/03/2015
Escreveu Mahler à sua mulher: «Eu não sou senão um arqueiro que atira no escuro”. Neste arqueiro cego encontra Salah Stétie a metáfora para falar do poeta.
Também eu me sinto vizinho dessa concepção, o que não nos traz certezas nem futuro mas essa imensa liberdade que nos dá o encontro com algo imemorial. De entre as mitologias em torno do poeta e da poesia é a que prefiro – a de uma escola de ignorâncias, como diria Ramos Rosa.
Também eu, no começo de todos os equívocos, quis ser um “poeta maldito”. Felizmente a vida pregou-me a partida e deu-me filhos, o que me fez entender que tudo recomeça sempre e em todas as direcções, mesmo o mal recomeça sempre, ainda que refractado.
Um maldito é um homem de um só vinco, que toma a prancha partida da piscina da sua infância por todas as pranchas do mundo e que teima em dizer «não» quando a melhor negação é dizer sim.
Se o vinho nos põe alegres, por que teimar em ter mau vinho? Há por aqui uma enorme pose, uma estapafúrdica falta de sabedoria.
A única forma eficaz da nossa indignação contribuir para uma mudança no mundo é dotá-lo de algo que nos religue e quebre a inércia do tanto que nos quer separar. Da beleza, por exemplo, que é a forma momentânea com que damos uma melodia ao informe.
Esta é com certeza o transe que nos impele à colaboração mais activa, numa realidade que, apesar de nós, se desagrega. E não importa o quanto se desagrega, mas o que fizemos para sair da linha recta e para a olhar duma perspectiva que a re-encantou.
Uma vez, na adolescência, dum mau poeta, li uma imagem que nunca mais me esqueci: na cidade que tombou num manto espessíssimo de nevoeiro dois homens aproximam-se. Não se vêem, mas um deles assobia a melodia do Casablanca, e quando cruzam as nubladas ausências, o que ia calado, sem se dar conta, começa também a assobiar a mesma canção. É tudo o que é possível fazer e julgo ser o pequeno estribo que nos salva do ganido dos cínicos.
Também eu lastimo o estado das coisas e me zango e atabalhoadamente me atiro num galope de sentenças e imprecações, de recusas que ziguezagueiam como eu, mas persistir na ira só me daria a impaciência que não me deixa ver. Há que saber que em cada momento o escuro pulsa com uma cadência diferente de modo a conseguirmos orientar a flecha na noite. Para onde ou para quê atiramos, desconhecemos, só intuimos que é nessa direcção. Um poeta maldito, e há muito poucos que o sejam genuinamente, é-o, apesar de si, de relance, e não em preocupada demonstração de zelo. Não fazem profissão.
Uma vez tive um poeta amigo tão furibundo que (dir-se-ia) torcia as colheres só de as olhar. Ficou em apuros. Todas as semanas jogávamos bilhar a dinheiro e eu perdia sempre. Era a única forma de se deixar ajudar. Depois insistia em passar pelo cemitério e em ir mijar nas campas. Percebi com ele que afinal não queria ser um poeta maldito, e que não urinar nas campas não queria dizer que as enchêssemos de licores.
Há uma grande vantagem em não ser um poeta maldito: não sei o que vou rejeitar amanhã, não sei sequer como vai ser amanhã, e o futuro e o passado encadeiam-se num presente discrepante, mas aberto, com sombras e flashes de luz atordoadores. Um homem vário e ondulante, diria o Montaigne, dá quanto muito uma profissão de fé, que é igual a dizer que na mão só se leva o vento, às rabanadas.
Um maldito-de-profissão ainda está na orbe do poder, é reactivo, eu prefiro os refractários que, sem muita convicção, apenas porque não conseguem ser de outra maneira, semeiam o “impoder”. Pode até amar o mal, uma certa configuração que lhe dá textura aos tecidos.
Desde que ame, que não finja amar. Aí os tigres brilham na neve.